Essa semana correu a notícia de um adolescente que foi discriminado por se recusar a rezar na escola. Me fez lembrar de uma história que tô devendo há anos nesse pobre blog...
Com dois anos recém completos, Alice frequentou uma escolinha infantil perto de casa. Nunca morri de amores pela escola, que tinha um espaço bem chinfrim e um estilo meio caretão. Mas ficava a dois quarteirões da minha casa, e isso falou mais alto. Eu achava que a escola não tinha muito como errar com crianças de dois anos, desde que elas brincasses bastante (e brincavam) e fossem bem cuidadas (e eram). Enfim, achei que dava pro gasto.
Comecei a me estranhar com o lugar logo nos primeiros dias, quando circulares da coordenação ou bilhetinhos da professora vieram com erros de português. Nada muito gritante, mas que me incomodaram. Hum.
A escola também fazia aquela coisa pavorosa de empurrar fotos cafonas dos nossos filhos. Às vezes enviava material publicitário de empresas dentro da mochila. Enfim, a escola já dava dicas que não ia passar do semestre com a gente. Mas Alice cantava as musiquinhas, falava dos amiguinhos e estava feliz.
Um dia ela juntou as mãozinhas antes do jantar, agradeceu ao Papai do Céu pela refeição e disse amém. Soou na minha cabeça um alarme bem alto e com luzes piscantes. Mané amém, gente! Minha filha não foi para a escola para aprender a rezar, correto? Isso faz parte da esfera privada, das crenças da família. Se eu quiser, rezo com ela. Uma oração católica, ou muçulmana, ou budista, do candomblé, wicca, o que quer que seja. Ou nenhuma. Isso não pode, de forma alguma, partir da escola.
Acontece que existe no Brasil essa mania de se achar que todo mundo é religioso - cristão, para ser exata. É como se nós fossemos cristãos de fábrica. Falar amém, vai com Deus ou Deus te abençoe é normal como dar bom dia (na verdade é MAIS normal do que dar bom dia). E isso é legal se demonstra cuidado, carinho, good vibes ou o que quer que seja. Mesmo sem acreditar em Deus, eu não vou me ofender se alguém me diz vai com Deus, claro que não. Vou é agradecer pela intenção (até porque uma bençãozinha de vez em quando nunca é demais). Cada um com a sua crença, descrença ou meia-crença, certo? Mas se a professora da minha filha, dentro da escola, ensina os alunos a rezarem, isso me ofende sim. Pois a professora tem uma responsabilidade que alguém que me diz "vai com Deus" na rua não tem. E botar a criançada para rezar, seja para o deus que for, demonstra: ou uma absoluta falta de percepção de que as pessoas são diferentes, ou uma absoluta falta de respeito com as diferenças.
Enfim, como o Brasil é um país que se diz laico mas de laico não tem nada, a coordenadora ficou completamente surpresa quando eu fui até a escola questionar a reza. Ela disse que aquilo é só uma musiquinha, "sem caráter religioso". Oi? A criança disse amém com as mãozinhas postas - se isso não tem caráter religioso, eu não sei o que tem.
Se a professora ensinasse as crianças a invocarem orixás antes do lanche, será que a coordenadora continuaria achando que isso não tem caráter religioso? Se cantassem uma música hinduísta, ou judaica, para agradecer a refeição, elas seriam só musiquinhas? E se todas virassem em direção à Meca e tocassem as testas no chão? Posso imaginar o escândalo. Mas amém pode. Papai do Céu pode. Porque isso não é religião, imagina.
Bom, se a coordenadora acha que não tem nada de mais, então a escola não serve pra gente, porque o nosso conceito de qual é o papel de uma escola passa bem longe disso.
É claro que a gente tirou Alice de lá e colocou em outro lugar. Que vem se confirmando a cada dia a escola dos sonhos. Que tem uma coordenadora muito porreta que dá altos esculachos nos pais, pra gente deixar de ser besta (pais são sempre meio bestas mesmo quando pensam que não o são). Com uma proposta e uma postura que me deixam completamente tranquila e segura. E que me mostrou claramento o que eu quero e não quero (melhor: aceito e não aceito) em uma escola.
Ai, gente, então.
Melhor fariam as escolas se usassem o tempo das orações ensinando leitura e interpretação de textos, né?
Achei que estava claro, mas vamos lá:
- Este texto não é sobre religião, é sobre religião na escola. É diferente, viu?
- Sim, Alice rezou. Não, isso não é o fim do mundo. Não tirou o meu sono. Não me deixou sequer um cabelo branco. O problema não está no fato de ter feito uma oração, e sim da oração ter vindo de uma escola que não se declara religiosa (de novo: uma ESCOLA que NÃO se declara religiosa). Não foi a vizinha, a avó, o tio, a amiga, o moço da feira quem ensinou. Foi a professora dela. Não sei vocês, mas eu espero bem mais de uma escola no que se refere a ter clareza de qual é o seu papel. E no respeito a crenças - ou descrenças - individuais. E acho que uma coordenadora escolar que minimiza isso é uma coordenadora de merda e está absolutamente despreparada para trabalhar com educação. Como desconfio seriamente de escolas que empregam coordenadoras de merda, tirei a minha filha de lá. Simples assim.
- Também acho que quem diz "é só uma oração, grande coisa" não entendeu o texto e está tão apegado às suas convicções que é incapaz de enxergar um palmo à frente do nariz no que se refere ao respeito às diferenças - ponto crucial de toda a discussão.
Proponho um pequeno exercício a quem ainda passar por aqui:
Após a leitura do texto, considere as seguintes hipóteses
1 - Eu, a autora do texto, creio em Deus, sou cristã e frequento a igreja. Crio os meus filho de acordo com os preceitos da minha religião. Mas ainda acho que a escola não tem nada a ver com isso.
2 - Alice não agradeceu ao Papai do Céu e nem em disse amém antes do jantar. Na verdade ela fez uma oferenda para o seu orixá, pois foi assim que a professora da escola ensinou.
OU: nós, da família, fizemos a prece, e ela disse: mas mãe, na escola eu aprendi que Deus não existe.
Considerou? Mesmo?
Pois bem: se essas duas possibilidades não mudam em nada o seu entendimento ou opinião sobre o texto , então pode ficar à vontade para fazer seu comentário e levar a conversa adiante.
Mas se elas mudam alguma coisa é porque, colega, você não entendeu absolutamente nada.